domingo, 22 de março de 2009

Amar com coragem

Quando eu era adolescente me apaixonei por um dos meus melhores amigos. Nem a tensão de entrar para o ensino médio e ter que estudar muito para passar no vestibular era mais importante do que esperar ele vir conversar comigo, nem que fosse para falar das garotas interessantes que ele conhecia na internet, no inglês, nos passeios do final de semana.

Lembro-me que nunca rezei tanto para não chegar às férias, fiquei para recuperação em matemática de propósito porque ele iria ficar, e nada era melhor do que acordar todas as manhãs ir ao colégio e sentar perto dele. Ele nem era muito bonito, mas era muito inteligente e tinha a chatice da pouca tolerância, normal dos inteligentes. Eu dava aulinhas de redação pra ele, e adorava quando ele não entendia alguma coisa e se aproximava de mim para eu explicar melhor. O cheiro dele, a respiração.

Nunca tive coragem de dizer o que eu sentia, tinha medo de perder a amizade, dele se afastar de mim. Os amigos encharcavam dizendo “isso ainda vai dar namoro” e eu ficava encabulada, ele desconversava. Na minha inocência adolescente, eu não sabia que ia perdê-lo de qualquer forma. Fosse pela morte, fosse pelo círculo normal da vida, e foi o que aconteceu.

As férias chegaram e na volta às aulas ele não voltou para a mesma escola. Lembro o quanto sofri. Queria mudar de colégio, descobrir onde ele estava estudando. Até que no Jern’s nos encontramos no vestiário do Parque Aquático. Era um dia de eliminatória. Ganhei prata nadando costas e ouro no revezamento. E na hora da premiação ele correu para o pódio, sorriu para mim e abraçou a campeã que era do colégio onde ele estudava; nada foi tão triste do que olhar ao longe procurando por ele e vê-lo caminhando de mãos dadas, trocando beijinhos com ela. Pra mim, os meses de treino e dedicação não tinham valido de nada. Foi a última vez que eu entrei numa piscina para competir. Foi a última vez que o vi.

Naquele dia me prometi chorando que dali em diante nada ia impedir que eu amasse com coragem. Acho que foi nesse dia que me tornei tão sensível, intensa e desaforada a amar pressionada em amar mais e mais.

Como mulher, admito tudo em um homem, menos que ele não ame com coragem. Amar com coragem é bem diferente de viver com coragem. Amar com coragem é caráter. Vem de uma obstinação que supera a lealdade. Vem de uma incompetência de ser diferente. É enfrentar sem pretextos de diferenças, distâncias, incompatibilidades. É entregar-se na madrugada e tomar café no carro para ganhar mais quinze minutos de carinho na cama.

Invejo quem planeja o amor. Quem se perfuma e compra roupa nova. Eu não consigo. Sou do amor fulminante, como um enfarte. De perder a razão, a hora, de esquecer a conta do telefone e a reunião do outro dia. O amor faz funcionar o que não existe.

Amo em segredo, a dois.

Amo com coragem, só isso.

terça-feira, 10 de março de 2009

Viagem Inesquecível

Adoro ler questionários, deve ser mania de ‘marketeiro’. Evitamos o contato fazendo pesquisas. Gosto de respondê-los também. Uma das melhores formas de conhecer as pessoas é saber suas preferências. Sempre que termino de responder um questionário acabo conhecendo um pouco mais de mim, de gostos que eu nunca parei para pensar.

Uma das perguntas que não podem faltar num questionário é: “Viagem inesquecível” e, lá se vem às respostas mais importadas possíveis. Passeios que vão das Cataratas do Iguaçu às Pirâmides do Egito, que voltam do Rio de Janeiro ao Museu do Prado, em Madri.

Meus sonhos de viagem são mais simples. Todas as noites eu viajo nos meus sonos demorados e nas minhas insônias insuportáveis. A minha ‘viagem inesquecível’ se deu na estrada, no caminho. Uma viagem corriqueira, que tinha tudo para ser como todas as outras. Entrar no ônibus e seguir por exatas quatro horas até Natal, como costumo brincar parodiando a música: “eu conheço cada buraco dessa estrada...” se somaria ao cansaço de um final de semana qualquer, não fosse meu colega do lado direito.

Peguei o ônibus atrasada nas paradas do caminho, como sempre, uma cadeira na janela, no meio, do lado esquerdo, que ainda não tenha companhia no corredor. Entro, sento, ligo o meu Ipod cheio de sambas e começo a ler José Juan Saer. O ônibus segue, mais duas paradas, o meu companheiro de poltrona senta. Desta vez, um senhor, alto, franzino, careca, moreno, os olhos fundos, o sorriso amarelado, a voz tão rouca e grave que me lembrou aqueles locutores de rádio do alvorecer.
- Boa tarde, moça.
Respondi me afastando com um sorriso encabulado.

Ele ficou me olhando, querendo puxar assunto. E eu, mentalizando para que ele não encontrasse um caminho, queria ler. E de repente começa a me perguntar do livro. Resumo sem graça, falo um pouco do autor e já vou fazendo sinais de que quero voltar à leitura. Ele insiste. Depois de alguns minutos de conversa, me disse que era professor aposentado de literatura e estava indo à Natal visitar a filha e conhecer o neto que tinha nascido há quatro dias. Abandonei a leitura, cheguei a Lajes sem sentir. Finalmente, alguém entendeu – sem me achar exagerada – a paixão que sinto por Pablo Neruda e Caio Fernando de Abreu.

Se aproximando de Natal ele resolveu perguntar minha descendência, fiquei desconfiada. Mas, contei. Disse de quem era filha, neta e até ousei entregar-lhe um cartão profissional com meus contatos e sugeri que encaminhasse uns artigos para publicação no jornal. Em vez de ler o cartão ele me olhou nos olhos e disse enfático: “Eu fui professor do seu pai”. Não podia ser. Ele não podia me conhecer ou lembrar. Vinte e quatro anos não são vinte e quatro dias e, certamente, fazia mais tempo. Ele só podia está confundindo, então, exclamei: “Do meu pai!!! Não, não, acho que o senhor está me confundindo com alguém...”. E quando vou respirando para justificar as minhas verdades ele começa a relatar parte da minha vida com intimidade e um conhecimento que eu desconhecia. Emocionada, olhei pela janela, o ônibus se aproximava do Machadinho e eu não demoraria mais do que 5 minutos ao lado daquele senhor. Tinha que descer.

Entendi naquele momento o que é história. Entendi o que é passagem, o que é paisagem, o que é passageiro. O meu companheiro de poltrona me ensinou que uma viagem para ser inesquecível precisa ser plena. Mesmo que ela chegue ao fim antes que façamos todas as perguntas.