quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Dois

Eu liguei pra ele. Chamou duas vezes até ele dizer: Oi. Chamou duas vezes. Três segundos. O tempo em que eu arranquei o restinho do esmalte vermelho da unha do dedo indicador.


Ele disse: oi. Respirou. Oi. Sem mais. Sem amor, sem querida, sem meu bem, sem minha filha, sem coração. Oi. Oi pessoa estranha.

Eu liguei pra ele. Ele sabe que eu não espero mais do que o terceiro toque. Impaciência. O ócio, a inércia, o tédio, a preguiça. A vontade de sumir. O desejo de gritar. A sensação de que eu vou morrer sufocada.

Falei que a ligação do outro dia tinha caído. Não tinha o que dizer. Não tinha motivos para o que dizer. Certamente, ele percebeu que a ligação caiu. Certamente percebeu que a minha voz estava estranha. Ele conhece os sons. Tá gripada? Essa sua mania de fungar... Fui interrompendo: vou pedir pro Papai Noel um aparelho respiratório novo, quem sabe ele joga pela janela.

Rimos juntos. Bobos que somos. Mas, a gente sempre ri das piadas mais bobas do nosso universo bobamente imaginário.

Pela vida. Pelos outros. Pelo tempo. Pelo medo. Pelo tempo. Pelo escuro. Pelo medo.

- Então, tá. No mais tudo bem?

- Tudo indo.

- Não conheço essa voz que você está ouvindo.

- Ah, é que eu deitei aqui na rede para olhar a Lua e esperar o futebol.

- Sim, mas e a voz?

- Tiê, ela tem umas composições bonitinhas. Essa se chama Dois.

- Dois? Dois numeral? É autoral o trabalho dela?

- É. Dois é par. É. Tem uma música em francês.

Aumentei o volume. Cantarolei um pedacinho: queria te contar que eu talvez tenha aqui comigo.

Sua voz. – ele suspirou continuando: rouca e anasalada.

- É um jeito educado de dizer que eu desafino?

- Não. É um jeito sem jeito de dizer que eu gosto de ouvir a sua voz. Principalmente se você fala assim, devagar.

De vagar. Divagar.

Bem, então era isso. Só liguei para dizer que conseguir o que você me pediu.

- É um jeito educado de dizer que quer desligar?

- Não. É um jeito sem jeito de dizer... de dizer...

Reticências.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Ele me ligou. Não esperava que ligasse. O dia seguinte é sempre a ressaca da noite anterior. Mas ele ligou e eu ouvia o barulho do vento mais do que da sua voz. Não tenho certeza de onde ele estava. Se era praia, se era praça. Se era dia, se era cinco horas a mais. E se estivesse chovendo? Nunca venta muito em dias de sol forte. Não venta aqui, lá não lembro.


Ele me ligou e não tínhamos muito o que dizer. Ele não teve coragem de falar que estava com saudades de ouvir minha voz. Eu não tive coragem de dizer que não estava tudo bem. Atendi assustada. Caminhava para o almoço. Depois, fiquei em silêncio. Ouvia uma música baixa que aos poucos foi abafando o vento. Era uma letra em inglês. Era uma balada leve. Não consegui captar muita coisa além de such a shame. Desconfio que se sentia só. Eu também me sinto. Principalmente quando lavo a louça e corto as unhas dos pés. Especialmente aos sábados. Ah, mas hoje é terça-feira.

Você tem se alimentado direito? Deu vontade de responder: a última vez foi naquela tarde, com você. Ele falou mais do que eu consegui ouvir. Perguntou várias vezes se eu estava entendendo o que estava me pedindo. Respondi que sim. Mas quase nunca entendo direito o que ele quer dizer, aposto que nem ele.

Eu ouviria a voz dele em silêncio a tarde inteira, a vida inteira. Contanto os sonhos, rindo dos pesadelos.

Aqueles olhos rubros. Claros de sol.

Não tínhamos o que falar. Aliás, tínhamos. Eu sempre tenho tanto a dizer. Tenho tanta vontade de telefonar a cada pôr do sol. No final da semana quase telefono só para desejar boa tarde. Mas, sempre encontro motivos pra não fazê-lo. Sempre invento jeitos de não desejar.

Para não desejá-lo.

Mais.

A ligação caiu.

Sem minutos de silêncio.

Sem suspiros.

Sem ter que retornar depois.

domingo, 22 de agosto de 2010

Sobre sumir,

Que emoção está escondida enquanto procuravam por você, que sensação deliciosa é sumir. É entrar em contato com o seu silêncio cheio de vozes, vozes cheias de pânico e respostas confusas. Depois de um tempo os outros não procuram mais você. É como jogar esconde-esconde sem gritar “salvo” no final. Os outros esquecem, os outros se esquecem de nós. Entrar em contato com a vontade de sumir me força a abandonar minhas pretensões. Não é que eu não deseje mais. É que eu não desejo agora. Não quero ter que mendigar a existência e voltar sem nada para o meio dos outros. Sem nada para o meio de mim. Meu mal é a lucidez. É essa escassez de chuva nos dias de sol. É essa sensação de preenchimento estranho com pouco. É essa energia de sal. E esse cansaço de doce. É esse cansaço de mim. É esse vazio estranho. É toda essa estranhez. Eu nunca quero voltar. O estado da solidão durante a perda do domínio é transformadora. Um dia eu me escondo de vez. Ninguém entende. Nunca vai entender. Um dia. Mais uma partida. E eu sou só uma peça do jogo. Salva. Perdida. Nem muito rápido, nem tarde demais.