E a solidão do meu coração se cansou.
Dessa multidão de falsidade.
Almoçava, olhava para a plantação e armava uma rede cortando a sala. Ele atravessava o corredor correndo. Soltava os livros em cima da cadeira e pulava estremecendo os punhos. Cheio de suor, com o uniforme sujo de areia e o cheiro da merenda de maracujá misturado com sol.
A cena se repetiu durante anos. Ela nem lembrava mais, até que ele chegou. Se abraçaram de saudade. Os dois na rede, se olhando apertados, não dava para balançar alto como antes.
- O pessoal da rua não brinca mais de cai no poço – ele disse. E agora? Como vou fazer pra te beijar sem que ninguém perceba?
- Não sei. Vamos dançar? Lembra que você me suspendia nos braços para dançar? Meus olhos não alcançavam os teus.
- Não posso mais com você em meus braços.
- Fale baixo. Os outros vão acordar.
- Onde você esteve esses anos todos? O que você fez? Eu quis morrer quando minha mãe falou que sua mãe tinha falado...
- É, eu quase casei com outro.
- E o que ele te fez? Ele te fez mulher?
- Xiiiiiiii, vá selar os cavalos. Quero ir até o Rio.
- Você perdeu a prática. Aposto que nem de bicicleta se equilibra mais.
- Eu nunca tive medo de nada com você. Esqueceu?
Correram pelos campos. Descansaram na sombra das carnaúbas. Tomaram banho matando a sede na correnteza do Rio. Comeram frutas frescas do pé.
- Eu quero escrever. Vamos voltar?
- Escrever? Pra quem?
- Saí daqui por um fio depois da agonia daquele velório. Agora volto e é outra cidade. Quero descobrir se faz sentido.
- Fique aqui comigo. Você não vai descobrir isso escrevendo. Vamos esperar o sol cair?
Falava isso enquanto tocava os cachos claros dos cabelos dela com a ponta dos dedos indicador e polegar.
- Vem daqui essa agonia pela a queda do sol - ela respondeu sorrindo, olhando- o por cima da testa. A cabeça repousando os sonhos nos ombros dele.
Voltaram. Pois já tinha se passado algumas horas e eles ainda precisariam de muito tempo para recuperar o tempo perdido.
(...)
- Não sujem a casa. Vocês precisam tomar um banho. Duas crianças. Parece que nunca vão crescer – gritou a voz cansada, diferente do agudo ativo que ela tinha em sua memória.
- Ela vai primeiro. Vou descansar na TV - gritou.
(...)
- Prima, você lembra que eu ficava te esperando na sala na tentativa de que você escorregasse?
- Risos. Claro que lembro, seu bobo. Teve uma vez que consegui te derrubar. Não me enxuguei de propósito, para que você caísse no piso de cimento que a moça tinha acabado de esfregar com cera...
Lembrou que sempre ao sair do banho vestia a calcinha por baixo da toalha, conhecia a intenção dele em sempre tentar derrubá-la.
- E o hoje? Se eu tentar puxar sua toalha?
Já faz um tempo, eu evito os velhos amigos. Não que os novos sejam melhores. Não são. Evito os velhos amigos pela necessidade que tenho sentido de evitar a lembrança do que já fui. Do que já foi.
Os velhos amigos nos devolvem – os velhos tempos. As lembranças infantes, os desejos revolucionários, os sonhos não realizados. Os velhos amigos sempre perguntam: E aí? Casou com aquele mané? Fez aquela viagem? Conseguiu aquele emprego? Superou aquele problema?
Conhecem nossa vida passada. Conhecem o que passou.
Os velhos amigos sempre nos fazem perguntas constrangedoras que ninguém tem coragem de fazer, não sei explicar muito bem, mas se você tem amizades assim, vai entender que por mais dolorosa que seja a pergunta, será direta e sincera a resposta. Não há chateações. Nem arrodeios. Sempre as verdades que mais tememos ouvir ou lembrar correm como piadas, sem a menor dor e com a maior graça. Até que chega o momento em que contam e recontam-se aquelas velhas histórias, as mesmas histórias, daquele velho porre, da velha casa de praia às beiras do Atlântico, daquele feriado, naquele final de semana, em que você encheu a cara, caiu na areia, beijou o primo do seu melhor amigo e se declarou carente. Aquele velha lanchonete trailer, aquele velho uno branco.
Viram que distante? Uma década.
A lanchonete virou uma praça. O carro saiu de linha. Nada que eles querem notícias faz mais parte da vida. Se você resolve contar como está o presente, eles tacam: ah, mas isso você sempre quis.
Esta semana, recebo uma convocação via DM: “Janta-se terça-feira, 20h, no La Goccia Blu, sem desculpas, sem falta”, depois, confirmações pelo telefone. Quase que a mensagem não cabe em 140 caracteres, quase que o jantar se torna o evento do ano. E aliás, não me lembro de ter tido um jantar melhor em 2010, aliás, não houve nada de tão melhor em 2010.
Amigos. De rua. De adolescência. Amigos que acompanharam o churrascão do vestibular, o primeiro porre, a primeira decepção, o primeiro amor. Amigos que chamam a mãe de Tia, o pai de Tio. Que deitam com os pés no sofá, que abrem a geladeira e tomam a última lata de coca-cola. Amigos que são amigos dos nossos irmãos. Amigos que a faculdade substitui por outros amigos, que o trabalho substitui pelos colegas. Amigos que o tempo não tira a intimidade. Amigos que dizem: mude o assunto, não aguento quando você fala nisso! Amigos que lembram: ah, e naquele sábado que você me levou aquele livro e até hoje não devolveu. "Vixiiii, nem sei onde tá". Amigos que conhecem o verso preferido da música favorita. Amigos que você não precisa se proteger de ser você.
Amigos que em menos de quatro horas lhe devolvem; a raça, a cor, a vontade de viver, lhe lembram o quanto sonhar vale a pena, o quanto acreditar reluz. Amigos que jogam pra fora todo o desespero e ansiedade. Amigos que dizem no olhar: o sofrimento não merece você.
Amigos que se lhe decepcionam nunca é por mal. Não precisa desculpas. Valem a ressaca de uma quarta-feira. Fazem amanhecer o sol.
Amigos.
São por eles que a gente se apaixona.